(A)tipicidade do contrato Built to Suit

24 de junho de 2024 Por Laís Hipólito Pereira França

A modalidade do contrato built to suit (BTS) tem origem no mercado imobiliário dos Estados Unidos (EUA), principalmente na década de 1950 e 1960. A contratação nessa modalidade popularizou e ganhou grande destaque em razão da sua essência, na qual o empreendedor constrói um imóvel conforme as especificações do pretenso locatário para posterior locação.

O período Pós-Segunda Guerra Mundial foi propício para o crescimento econômico, industrial e imobiliário dos EUA, e a modalidade BTS ganhou força, pois atendia às necessidades das empresas que desejavam locar espaços comerciais ou industriais adaptados especialmente às suas operações e requisitos particulares, sem que o empresário, futuro locatário, despendesse imediatamente de grandes valores para comprar imóvel e adaptá-lo ao seu uso.

Esse tipo contratual foi bastante difundido pelo mundo e ganhou grande destaque no setor de construção civil, tendo sido introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 12.744, de 19 de dezembro de 2012, a qual alterou o artigo 4º e acrescentou o artigo 54-A à Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 (Lei de Locação), trazendo uma breve disposição sobre a locação nos contratos de construção ajustada.

Apesar de ser previsto na Lei de Locações, o BTS é considerado um contrato atípico devido à sua natureza multifacetada. Este artigo visa explorar as razões dessa atipicidade, detalhando as particularidades e exceções desse tipo de contrato, bem como destacando a importância da liberdade e autonomia da vontade das partes envolvidas.

Conceito e natureza jurídica do contrato

O contrato de Built to suit, em tradução livre, é entendido como construído para servir, Gomide (2023, p.318) determina que o contrato BTS: “é modelo de negócio jurídico em que o empreendedor imobiliário reforma ou edifica determinado imóvel sob medida ao ocupante e, finalizada a obra, cede o uso da edificação por período determinado”.

O referido contrato está positivado no artigo 54-A da Lei de Locação (Lei nº 8.245/91), que assim determina:

Art. 54-A.  Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei.   

§ 1o  Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.      

§ 2o  Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação. (sem grifos no original)

 

Considerando que o instrumento envolve um acordo no qual o proprietário (locador) se compromete a construir um imóvel conforme as especificações do locatário, que, por sua vez, compromete-se a locar o imóvel por um período determinado. Como já pontuado, essa modalidade segue uma tendência de as empresas desmobilizarem seus ativos imobiliários e não despenderem grandes valores em ramos de atividades diversas do seu objeto social, procurando por imóveis que serão entregues e adaptados conforme a realidade de sua operação. Segundo Zanetti (2011, p,105), essa modalidade é “atrativa por permitir que cada parte persiga seu próprio interesse sem perder de foco a respectiva atividade”.

Da leitura do caput do artigo legal supracitado e do próprio conceito da modalidade contratual, vê-se que o negócio a ser entabulado entre as Partes seguirá por duas fases bem definidas, a primeira, precedente de uma aquisição, construção e reforma do imóvel pelo empreendedor, conforme as solicitações do locatário, desta fase envolverá uma empreitada e/ou uma compra e venda de imóvel para o cumprimento do negócio; e a segunda fase será a locação deste imóvel com longo prazo de vigência, tendo como fim remunerar e retornar os valores investidos ao o locador.

Em muitos casos, o valor fixado a título de aluguel é superior aos demais valores de mercado, com fundamento justamente na essencial contratual e, justamente visando dar uma proteção maior as garantias de reembolso do investimento despendido pelo locador, bem como fortalecer os princípios da liberdade e da autonomia da vontade das partes, é que o legislador previu no primeiro parágrafo do artigo 54-A da Lei de Locação a possibilidade da renúncia ao direito de revisão do valor do aluguel.

Seguindo esta mesma linha, o parágrafo segundo do mesmo dispositivo legal prevê de forma expressa que a multa contratual em caso de rescisão antecipada pelo locatário poderá ser correspondente ao montante do valor previsto para o tempo contratual residual. Essa previsão fortalece a segurança jurídica dos contratos e os princípios da obrigatoriedade e boa-fé a ser observada entre os signatários. Importante lembrar que esse parágrafo deve ter leitura conjugada com o caput do artigo 4º da mesma Lei[1].

Diante dessa modalidade de contrato, o locatário receberá o imóvel nas especificações e forma necessárias para iniciar suas atividades comerciais e, por outro lado, o locador terá como retorno financeiro dessa obra o pagamento sucessivo de aluguéis por um longo período, tendo previsões legais, mesmo que escassa, visando equilibrar os negócios celebrados.

Da atipicidade do contrato na modalidade Built to suit

Da leitura do caput do artigo 54-A e do próprio conceito da modalidade contratual, vê-se que o imóvel a ser locado para fins comerciais poderá ser precedido de prévia aquisição, construção ou substancial reforma pelo locador, deste modo, este contrato é caracterizado pela combinação de elementos de diferentes tipos contratuais, possuindo elementos decorrentes (i) de uma contratação de empreitada que realizará as obras sob medida e nas determinações indicadas pelo pretenso locatário; e (ii) de uma possível compra e venda, alinhada como a empreitada, para servir ao futuro ocupante.

Em relação a hipótese citada em (ii), é importante ressaltar que o empreendedor pode construir em terreno de sua propriedade ou, poderá, ainda, comprar de terceiros imóveis para proceder com a construção nos moldes requisitados, sendo que neste último caso o pretenso locatário não participará do contrato a ser firmado com o locador e o terceiro vendedor, mas, de certa forma, são relações interligadas e decorrentes, já que as condições para essa escolha também deverão ser acordadas entre as partes envolvidas na locação.

Assim, o contrato BTS incorpora aspectos de contratos de empreitada e, ocasionalmente, de compra e venda. Essa multifuncionalidade torna sua classificação e regulamentação um desafio, pois é a soma desses elementos/prestações que faz surgir o Built to Suit. Gomide (2023, p.320) assevera:

O contrato Built to Suit não é, assim, um contrato de locação, com prestações do contrato de empreitada. Trata-se de contrato envolvendo prestações decorrentes de contratos de locação, empreitada e compra e venda (se o caso). Não há, todavia, nenhum tipo dominante, a nosso ver. Não é, por tanto, mais locação e menos empreitada, mas, sim, locação e empreitada.

Insta pontuar que ao comparar o contrato Built to Suit com uma locação comercial simples, claramente há diferenças. A inclusão da empreitada e/ou compra e venda (se for o caso), mostra-se como uma prestação obrigatória na modalidade Built to Suit, ainda que prevista na Lei de Locação (artigo 54-A, da Lei 8.245/91). Veja-se que ao retirar a empreitada e/ou compra e venda, tem-se a locação comercial pura e simples e se retornarem, novamente se terá um contrato na modalidade Built to Suit, corroborando com o ideal de que este último é um contrato atípico pois não se enquadra na roupagem da Lei de Locação.

A corroborar com essa dificuldade em classificar a modalidade contratual Built to Suit como um contrato típico, já que previsto no caput do artigo 54-A, da Lei 8.245/91, o mesmo dispositivo, determina que “prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta lei”.

Certo é que ser um contrato típico ou atípico traz uma consequência direta na disciplina jurídica dos contratos, já que na hipótese da atipicidade, por essência, prevalecerá as disposições que foram livremente pactuadas entre as partes contratantes, utilizando o ordenamento jurídico e as demais regulações das prestações que compõem o contrato, enquanto nos contratos típicos, prevalecerá as disposições legais que regulamentam aquele tipo de instrumento tipificado e as demais condições acordadas não poderá ultrapassar as determinações ali previstas.

Considerando o caput do artigo 54-A da Lei de Locação, bem como o artigo 425 do Código Civil que assevera “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”, pode-se concluir que estamos diante de um contrato atípico, já que na modalidade Built to Suit, as condições previamente acordadas entre as partes signatárias prevalecerão às demais regras, observado, evidentemente, os limites do ordenamento jurídico e dos princípios contratuais.

Desta forma, mesmo que a Lei nº 12.744, de 19 de dezembro de 2012, tenha introduzido regramentos visando assegurar a segurança jurídica e, principalmente, preservar o equilíbrio e paridade contratual, com a inclusão do artigo 54-A na Lei de Locação, contrato na modalidade Built to Suit é considerado um contrato atípico, não se adequando completamente às normas da Lei de Locação, tendo uma aplicação direta, a seguinte ordem de hierarquia: os artigos 4º e 54-A, na lei 8.245/91; as normas e princípios estabelecidos no Código Civil para a generalidade dos contratos; o Código de Processo Civil; dos usos e costumes da operação dos contratos Built to Suit; as demais disposições da lei 8.245/91; as disposições do contrato de empreitada e do contrato de compra e venda no Código Civil; e as disposições do contrato de locação previsto no Código Civil.

Considerações finais

O contrato Built to Suit, apesar de sua previsão legal, continua sendo um instrumento atípico devido à sua complexidade e à integração de diferentes tipos de contratos. Sua atipicidade exige uma abordagem jurídica cuidadosa, garantindo que todas as especificidades sejam contempladas e que as partes tenham segurança jurídica. A liberdade e a autonomia da vontade, bem como os princípios da boa-fé e da obrigatoriedade são cruciais para a formação do instrumento contratual nessa modalidade.  

 

Referências

 BRASIL. Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2002.

 BRASIL. Lei Nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1991.

GOMIDE, Alexandre Junqueira. Built to Suits. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (org.). Manual dos Contratos Imobiliários. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2023. p. 318-337.

GOMIDE, Alexandre Junqueira. Contrato ´built to suit´: em defesa da atipicidade contratual, 2017. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/depeso/259557/contrato–built-to-suit—em-defesa-da-atipicidade-contratual. >. Acesso em: 20 de maio de 2024.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2020.

 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 8ª ed. São Paulo: Método, 2022.

VITORINO, Ana. Built to Suits (BTS): contrato atípico de locação comercial como tendência no mercado imobiliário. Emrich Leão Advogados, 2023 Disponível em: < https://www.emrichleao.adv.br/blog/6-artigos/133-built-to-suits-bts-contrato-atipico-de-locacao-comercial-como-tendencia-no-mercado-imobiliario#:~:text=Embora%20previsto%20na%20Lei%20de,encontrado%20nos%20contratos%20de%20aluguel. >. Acesso em: 20 de maio de 2024.

ZANETTI, Cristiano de Souza. Build to Suit – Qualificação e Consequência. In: BAPTISTA, Luiz Olavo; ALMEIDA PRADO, Maurício (org.). Construção Civil e Direito. São Paulo: Lex Magister, 2011. p. 105.

[1] Lei 8.245/91: Art. 4º Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2º do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.      (Redação dada pela Lei nº 12.744, de 2012)

 

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